A família Brito e Cunha (Semanário 07/03/1992)
Os Brito e Cunha, “Tripeiros” de Muitas Gerações
“Ao Porto setecentista não seria estranha, decerto, a figura de António Bernardo Álvares de Brito, ilustríssimo bacharel em cânones que, entre outras honrarias, coleccionava as de Cavaleiro-Fidalgo da Casa Real, Cavaleiro Professo da Ordem de Cristo e Familiar do Santo Ofício. Possuía a sua árvore genealógica devidamente organizada, era pessoa de nome e de respeito e casou bem. Foi sua mulher D. Teresa Bárbara da Cunha e Castro e Vasconcelos, morgada da Cunha e 14ª administradora do vínculo de Nossa Senhora da Esperança, com capela nos claustros da Sé do Porto. Estou em crer no “tripeirismo” de gema do bacharel. A Senhora vejo-a antes em sossegados colóquios com as rosas do seu jardim, num venerando solar de província. Herdeira, e rica, não houve dificuldade em fazer prova das suas virtudes conjugais. E a administração que lhe competia da sobredita capela vinculada revela também profundas raízes familiares no Porto – ou não datasse a instituição daquela dos idos de 1412, por devoção de um arcediago, neto de Domingos Perez das Eyras a quem, conforme Fernão Lopes, “derõ logar os da cidade que falasse por elles” quando o Mestre de Avis veio pedir reforços para contrariar o cerco de Lisboa. Admitindo o parentesco entre o porta-voz dos candidatos à recruta e a excelente morgadinha, forçoso é concluir, então, que poucos serão tão genuinamente portuenses como os Brito e Cunha.
Porque do bacharel António de Brito e de D. Teresa Bárbara da Cunha foi filho António Bernardo de Brito e Cunha, uma folha de propriedades, títulos e cargos igualmente vasta, rendosa e digna. O velho burgo foi o seu berço, a sua vida e o seu túmulo. Na comarca do Porto exerceu como contador da Real Fazenda, na Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro como deputado. Para as laboriosas gentes “tripeiras” não sei que pergaminhos arranjar de mais alto prestígio. Contador e deputado! Erudito, também, e permeável às ideias novas que os ventos da conspiração traziam de França. Chegámos às desinteligências entre o Portugal tradicional e o “vanguardismo” liberal. A cidade assiste ao pronunciamento militar contra o poder legitimista da capital. Há movimentação de tropas, combates, os chefes revolucionários são os primeiros a fugir. É o episódio canhestro da Belfastada, corre o ano de 1828, segue-se o drama da retirada para a Galiza. Como em qualquer guerra civil, as retaliações assumem foros de perfeita selvajaria. Os implicados cativos servirão de matéria-prima à fábrica de impiedades trazida para o Porto com a famigerada alçada. Vamos já em Maio de 1829. A narrativa pertence agora a Oliveira Martins (in “Portugal Contemporâneo”):
“Na manhã do dia 7, pelas dez horas, saíram processionalmente da Relação para a Praça Nova onde havia duas forcas armadas: eram demasiados para uma só. Tropas abriam o préstito; depois a irmandade da Misericórdia com o seu painel erguido; em seguida padres e frades, salmeando latim fúnebre num cantochão rouco; logo a tumba, pintada de negro com os emblemas mortuários herdados do paganismo: a ampulheta, a foice, a caveira; depois um alto crucifixo erguido com a figura voltada para os seus réus que vinham ladeados de frades, arrastando-se vivos, agonizantes, nas suas alvas longas, de capuz caído sobre as costas, com a corda que os afogaria passada à cintura...”
Eram uma dezena os condenados. Entre eles estava António Bernardo de Brito e Cunha. Morreu na Praça Nova, a actual Praça da Liberdade, ali onde colocaram depois a estátua equestre de D. Pedro IV. O seu nome, e o dos demais supliciados, para que os portuenses não os esqueçam, está gravado no pedestal do monumento.
Enfim, António Bernardo de Brito e Cunha foi “malhado”, foi herege, viria a ser mártir, apóstolo da justiça. A Casa do Ribeirinho, em Matosinhos, que há gerações servia de residência aos morgados da sua Família, acolheu D. Pedro e o seu quartel-general, após o desembarque no Mindelo. A revolução triunfou – com ela dá-se a reabilitação do seu nome e da sua Família. E entre os seus filhos e netos vamos encontrar pessoas gradas, novamente, na sociedade portuense e frequentadores assíduos da Corte. Logo na geração seguinte à de António Bernardo, os Brito e Cunha encabeçam, com os filhos de Frutuoso Aires, o alicerçamento da novel praia da Granja, onde são senhores de alargadíssimos domínios. Durante décadas o Conselheiro João Eduardo de Brito e Cunha, Moço-Fidalgo da Casa Real, mantém-se à frente da célebre “Assembleia” daquela estância balnear. É o tempo da “ditadura Brito e Cunha” – “tudo dispunha, tudo governava... mas todos o respeitavam”, dizia-se então. “O Rei da Granja”, como o apelidou e desenhou, de coroa e ceptro, João de Almeida e Brito, conhecido caricaturista granjola – o “Rei da Granja” morreu em Abril de 1910, poupando-se assim à triste visão da queda da Monarquia. Os seus descendentes, e os dos seus irmãos, continuam na Granja, no Porto, ramificaram abundantemente no Brasil."
João Afonso Machado
(in Suplemento do "Semanário nº. 433" de 7 de Março de 1992 - pág. 20-21)
“Ao Porto setecentista não seria estranha, decerto, a figura de António Bernardo Álvares de Brito, ilustríssimo bacharel em cânones que, entre outras honrarias, coleccionava as de Cavaleiro-Fidalgo da Casa Real, Cavaleiro Professo da Ordem de Cristo e Familiar do Santo Ofício. Possuía a sua árvore genealógica devidamente organizada, era pessoa de nome e de respeito e casou bem. Foi sua mulher D. Teresa Bárbara da Cunha e Castro e Vasconcelos, morgada da Cunha e 14ª administradora do vínculo de Nossa Senhora da Esperança, com capela nos claustros da Sé do Porto. Estou em crer no “tripeirismo” de gema do bacharel. A Senhora vejo-a antes em sossegados colóquios com as rosas do seu jardim, num venerando solar de província. Herdeira, e rica, não houve dificuldade em fazer prova das suas virtudes conjugais. E a administração que lhe competia da sobredita capela vinculada revela também profundas raízes familiares no Porto – ou não datasse a instituição daquela dos idos de 1412, por devoção de um arcediago, neto de Domingos Perez das Eyras a quem, conforme Fernão Lopes, “derõ logar os da cidade que falasse por elles” quando o Mestre de Avis veio pedir reforços para contrariar o cerco de Lisboa. Admitindo o parentesco entre o porta-voz dos candidatos à recruta e a excelente morgadinha, forçoso é concluir, então, que poucos serão tão genuinamente portuenses como os Brito e Cunha.
Porque do bacharel António de Brito e de D. Teresa Bárbara da Cunha foi filho António Bernardo de Brito e Cunha, uma folha de propriedades, títulos e cargos igualmente vasta, rendosa e digna. O velho burgo foi o seu berço, a sua vida e o seu túmulo. Na comarca do Porto exerceu como contador da Real Fazenda, na Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro como deputado. Para as laboriosas gentes “tripeiras” não sei que pergaminhos arranjar de mais alto prestígio. Contador e deputado! Erudito, também, e permeável às ideias novas que os ventos da conspiração traziam de França. Chegámos às desinteligências entre o Portugal tradicional e o “vanguardismo” liberal. A cidade assiste ao pronunciamento militar contra o poder legitimista da capital. Há movimentação de tropas, combates, os chefes revolucionários são os primeiros a fugir. É o episódio canhestro da Belfastada, corre o ano de 1828, segue-se o drama da retirada para a Galiza. Como em qualquer guerra civil, as retaliações assumem foros de perfeita selvajaria. Os implicados cativos servirão de matéria-prima à fábrica de impiedades trazida para o Porto com a famigerada alçada. Vamos já em Maio de 1829. A narrativa pertence agora a Oliveira Martins (in “Portugal Contemporâneo”):
“Na manhã do dia 7, pelas dez horas, saíram processionalmente da Relação para a Praça Nova onde havia duas forcas armadas: eram demasiados para uma só. Tropas abriam o préstito; depois a irmandade da Misericórdia com o seu painel erguido; em seguida padres e frades, salmeando latim fúnebre num cantochão rouco; logo a tumba, pintada de negro com os emblemas mortuários herdados do paganismo: a ampulheta, a foice, a caveira; depois um alto crucifixo erguido com a figura voltada para os seus réus que vinham ladeados de frades, arrastando-se vivos, agonizantes, nas suas alvas longas, de capuz caído sobre as costas, com a corda que os afogaria passada à cintura...”
Eram uma dezena os condenados. Entre eles estava António Bernardo de Brito e Cunha. Morreu na Praça Nova, a actual Praça da Liberdade, ali onde colocaram depois a estátua equestre de D. Pedro IV. O seu nome, e o dos demais supliciados, para que os portuenses não os esqueçam, está gravado no pedestal do monumento.
Enfim, António Bernardo de Brito e Cunha foi “malhado”, foi herege, viria a ser mártir, apóstolo da justiça. A Casa do Ribeirinho, em Matosinhos, que há gerações servia de residência aos morgados da sua Família, acolheu D. Pedro e o seu quartel-general, após o desembarque no Mindelo. A revolução triunfou – com ela dá-se a reabilitação do seu nome e da sua Família. E entre os seus filhos e netos vamos encontrar pessoas gradas, novamente, na sociedade portuense e frequentadores assíduos da Corte. Logo na geração seguinte à de António Bernardo, os Brito e Cunha encabeçam, com os filhos de Frutuoso Aires, o alicerçamento da novel praia da Granja, onde são senhores de alargadíssimos domínios. Durante décadas o Conselheiro João Eduardo de Brito e Cunha, Moço-Fidalgo da Casa Real, mantém-se à frente da célebre “Assembleia” daquela estância balnear. É o tempo da “ditadura Brito e Cunha” – “tudo dispunha, tudo governava... mas todos o respeitavam”, dizia-se então. “O Rei da Granja”, como o apelidou e desenhou, de coroa e ceptro, João de Almeida e Brito, conhecido caricaturista granjola – o “Rei da Granja” morreu em Abril de 1910, poupando-se assim à triste visão da queda da Monarquia. Os seus descendentes, e os dos seus irmãos, continuam na Granja, no Porto, ramificaram abundantemente no Brasil."
João Afonso Machado
(in Suplemento do "Semanário nº. 433" de 7 de Março de 1992 - pág. 20-21)