Nuno Maria de Brito e Cunha (crónica de Julho 1958)
Nuno de Brito e Cunha: As Últimas Figuras do Romantismo Portuense
“Quando eu o conheci, já ele era sexagenário. Mas conservava ainda a bela figura de homem elegante, distinto, muito janota, a que o monóculo, entalado na órbita, arrepanhando-lhe a face numa ironia, acabava de dar a nota complementar de irreverência dos rapazes de bom tom da sua época.
Pois Brito e Cunha, já octogenário, a caminho dos noventa, morreu agora em Lisboa e foi a enterrar, rodeado de parentes e amigos, ali em Matosinhos.
É difícil escrever uma crónica sobre este homem, porque é necessário, antes de mais nada, colocá-lo na sua época, que era bem diferente da nossa época. Porque Brito e Cunha, homem distinto e perfeitamente educado, pertenceu acima de tudo e antes de mais nada à sua família, uma das famílias, aliás, mais distintas do Porto. Tinha filhos e tinha netos, a quem, sem dúvida, queria muitíssimo. Todavia, Nuno de Brito e Cunha era também um pouco do Porto, como figura interessantíssima, verdadeiro “último abencerragem de uma boémia elegante, muito janota, que tinha algum parentesco com os românticos dos século XIX e com os espadachins dos século XVII e XVIII. Pode mesmo dizer-se que foi o último, em boa verdade, dessa geração de janotas portugueses que davam a esta cidade, agora desprovida de figuras e de tipos, uma nota alegre e máscula, de raça, que precisamente falta à fauna social de hoje em dia – toda nivelada à maior chateza, desprovida de personalidade. Se hoje em dia tudo parece mal, inclusive ser diferente da multidão, escravizada a um padrão, a um tipo único, sempre é certo ser muito difícil escrever a respeito de Brito e Cunha, pois se teme que a incompreensão do meio e da época, possa ver com olhos menos justos a intenção de quem, tendo sido seu amigo, deseja agora, com o coração nas mãos, cheio de ternura e de saudade, evocar um homem que sobreviveu à mentalidade do seu tempo, que havia morrido já...
É pois, à margem das notícias necrológicas, ladeando o acontecimento triste, que tanto feriu do mesmo passo o coração dos seus parentes e dos seus amigos, no número dos quais há muito me considerava, que vou falar, a traço largo, de Nuno de Brito e Cunha, relacionando-o acima de tudo com o espírito do tempo em que se formou e educou.
Nuno de Brito e Cunha, tinha nas suas veias bom sangue, pois descendia de uma distinta família liberal, que inscrevia na melhor tradição da sua excelente linhagem de fidalgo-burguês, o sacrifício generoso de um antepassado que foi enforcado pelas hostes de D. Miguel – facto que muito o orgulhava e determinara o seu conhecido horror ao absolutismo. Monárquico, sim, foi sempre, e pertencia ao número dos que, quando falam (ainda hoje) dos últimos reis e príncipes, o fazem sempre respeitosamente, adjudicando a seus nomes, pronunciados com veneração, o “Dom”... Assim lhe ouvi muitas vezes dizer “Senhora Dona Amélia. Senhor Dom Carlos. Senhor Dom Manuel” – expressões, diga-se de passagem, que nunca feriram a minha sensibilidade de republicano, nem aguçaram a minha irreverência de humorista. Homens como Brito e Cunha animava-os o ideal de serem firmes e constantes às tradições das suas próprias famílias...Seria um erro, mesmo um defeito? Talvez, talvez.....Todavia, numa época de confusão e de desinteresse, não há que ter juízo severo dos que viveram no respeito de crenças e convicções....
Nuno de Brito e Cunha foi nesse respeito um homem leal e fidelíssimo às tradições da sua nobre raça e conservou-se o mesmo até ao último alento de vida. Essa justiça tem que fazer-se ao homem que viveu a sua vida apaixonadamente, mas sempre de cabeça erguida, e sem jamais ter deixado aquele monóculo que lhe arrepanhava a face e a boca numa ironia deliciosa de irreverência e petulância no melhor sentido dos vocábulos.
Janota e boémio como todos os bons rapazes do seu tempo, que, repito, era bem diferente do nosso tempo, sempre homem e aprumado, não deixou de ser do mesmo passo, um homem da sociedade e um homem de trabalho.
O mal que possa julgar-se desses homens valentes, destemidos, audazes, que se riam de certas convenções, não estava neles, mas, sim, na sociedade que os formou e educou. Mas eram tantas as virtudes, tão pitorescas as acções, os gestos, os risos, as chalaças e irreverências, que todos nós podemos lamentar que já não haja hoje quem viva assim...
Nuno de Brito e Cunha deve ter sido o último.
E se o choramos como amigo e companheiro de algumas tardes e noites de tagarelice desenfastiada, despreocupada e alegre, não deixamos também de chorar uma época que foi e já não é – uma atitude humana desempoeirada, nobre e elegante!
Aqui fica, para terminar estas singelas e sinceras palavras de evocação saudosa um abraço para o arquitecto Brito e Cunha, Professor da Escola Superior de Belas Artes, que o “Pai Nuno” me apresentou há alguns anos numa daquelas tardes inocentemente eufóricas que jamais esquecerei!
Com Nuno de Brito e Cunha morreu, de facto, o Porto antigo, o Porto janota e elegante...
Que saudades me ficam de um e outro!......”
Octávio Sérgio
(in ??? circa Julho 1958)
“Quando eu o conheci, já ele era sexagenário. Mas conservava ainda a bela figura de homem elegante, distinto, muito janota, a que o monóculo, entalado na órbita, arrepanhando-lhe a face numa ironia, acabava de dar a nota complementar de irreverência dos rapazes de bom tom da sua época.
Pois Brito e Cunha, já octogenário, a caminho dos noventa, morreu agora em Lisboa e foi a enterrar, rodeado de parentes e amigos, ali em Matosinhos.
É difícil escrever uma crónica sobre este homem, porque é necessário, antes de mais nada, colocá-lo na sua época, que era bem diferente da nossa época. Porque Brito e Cunha, homem distinto e perfeitamente educado, pertenceu acima de tudo e antes de mais nada à sua família, uma das famílias, aliás, mais distintas do Porto. Tinha filhos e tinha netos, a quem, sem dúvida, queria muitíssimo. Todavia, Nuno de Brito e Cunha era também um pouco do Porto, como figura interessantíssima, verdadeiro “último abencerragem de uma boémia elegante, muito janota, que tinha algum parentesco com os românticos dos século XIX e com os espadachins dos século XVII e XVIII. Pode mesmo dizer-se que foi o último, em boa verdade, dessa geração de janotas portugueses que davam a esta cidade, agora desprovida de figuras e de tipos, uma nota alegre e máscula, de raça, que precisamente falta à fauna social de hoje em dia – toda nivelada à maior chateza, desprovida de personalidade. Se hoje em dia tudo parece mal, inclusive ser diferente da multidão, escravizada a um padrão, a um tipo único, sempre é certo ser muito difícil escrever a respeito de Brito e Cunha, pois se teme que a incompreensão do meio e da época, possa ver com olhos menos justos a intenção de quem, tendo sido seu amigo, deseja agora, com o coração nas mãos, cheio de ternura e de saudade, evocar um homem que sobreviveu à mentalidade do seu tempo, que havia morrido já...
É pois, à margem das notícias necrológicas, ladeando o acontecimento triste, que tanto feriu do mesmo passo o coração dos seus parentes e dos seus amigos, no número dos quais há muito me considerava, que vou falar, a traço largo, de Nuno de Brito e Cunha, relacionando-o acima de tudo com o espírito do tempo em que se formou e educou.
Nuno de Brito e Cunha, tinha nas suas veias bom sangue, pois descendia de uma distinta família liberal, que inscrevia na melhor tradição da sua excelente linhagem de fidalgo-burguês, o sacrifício generoso de um antepassado que foi enforcado pelas hostes de D. Miguel – facto que muito o orgulhava e determinara o seu conhecido horror ao absolutismo. Monárquico, sim, foi sempre, e pertencia ao número dos que, quando falam (ainda hoje) dos últimos reis e príncipes, o fazem sempre respeitosamente, adjudicando a seus nomes, pronunciados com veneração, o “Dom”... Assim lhe ouvi muitas vezes dizer “Senhora Dona Amélia. Senhor Dom Carlos. Senhor Dom Manuel” – expressões, diga-se de passagem, que nunca feriram a minha sensibilidade de republicano, nem aguçaram a minha irreverência de humorista. Homens como Brito e Cunha animava-os o ideal de serem firmes e constantes às tradições das suas próprias famílias...Seria um erro, mesmo um defeito? Talvez, talvez.....Todavia, numa época de confusão e de desinteresse, não há que ter juízo severo dos que viveram no respeito de crenças e convicções....
Nuno de Brito e Cunha foi nesse respeito um homem leal e fidelíssimo às tradições da sua nobre raça e conservou-se o mesmo até ao último alento de vida. Essa justiça tem que fazer-se ao homem que viveu a sua vida apaixonadamente, mas sempre de cabeça erguida, e sem jamais ter deixado aquele monóculo que lhe arrepanhava a face e a boca numa ironia deliciosa de irreverência e petulância no melhor sentido dos vocábulos.
Janota e boémio como todos os bons rapazes do seu tempo, que, repito, era bem diferente do nosso tempo, sempre homem e aprumado, não deixou de ser do mesmo passo, um homem da sociedade e um homem de trabalho.
O mal que possa julgar-se desses homens valentes, destemidos, audazes, que se riam de certas convenções, não estava neles, mas, sim, na sociedade que os formou e educou. Mas eram tantas as virtudes, tão pitorescas as acções, os gestos, os risos, as chalaças e irreverências, que todos nós podemos lamentar que já não haja hoje quem viva assim...
Nuno de Brito e Cunha deve ter sido o último.
E se o choramos como amigo e companheiro de algumas tardes e noites de tagarelice desenfastiada, despreocupada e alegre, não deixamos também de chorar uma época que foi e já não é – uma atitude humana desempoeirada, nobre e elegante!
Aqui fica, para terminar estas singelas e sinceras palavras de evocação saudosa um abraço para o arquitecto Brito e Cunha, Professor da Escola Superior de Belas Artes, que o “Pai Nuno” me apresentou há alguns anos numa daquelas tardes inocentemente eufóricas que jamais esquecerei!
Com Nuno de Brito e Cunha morreu, de facto, o Porto antigo, o Porto janota e elegante...
Que saudades me ficam de um e outro!......”
Octávio Sérgio
(in ??? circa Julho 1958)